Julizar Dantas

Espírito de equipe...

Do convívio aberto nasce a confiança recíproca.

O respeito gerado pela amizade estreita...

As metas traçadas numa visão perfeita.

 

            O processo de reestruturação produtiva surgiu em resposta às exigências de um mercado extremamente competitivo, reflexo da globalização da economia. Essa nova forma de produzir, viabilizada pela combinação entre a evolução tecnológica e os novos modelos de gestão, pode ser responsável por repercussões adversas na organização do trabalho. A reestruturação do processo produtivo promoveu profundas repercussões psicossociais originadas da relação entre o homem e o trabalho. O trabalho está mais complexo, denso e intenso. As variabilidades e incertezas são cada vez maiores. O ritmo ficou mais acelerado. A consequência observada é o aumento das exigências cognitivas e psíquicas e da carga de trabalho, aumentando o desgaste da saúde e qualidade de vida.

            As dificuldades encontradas pelos trabalhadores no mundo corporativo residem na articulação entre as dimensões pessoal e socioeconômica. O lugar onde se dá essa articulação é a situação de trabalho, que inclui as condições e a atividade do trabalho. O resultado final desse processo incorpora a obra pessoal e a produção comercializável. A dimensão socioeconômica domina a dimensão pessoal da atividade. Essa dominação toma a forma do trabalho prescrito no quadro de uma organização imposta. A distância, sempre constatada entre o trabalho prescrito e o real, revela ao mesmo tempo essa dominação e seus limites.1

            O trabalho prescrito refere-se a normas operacionais formalizadas em procedimentos ou inscritas nos dispositivos técnicos. O trabalho real é diferente do prescrito. Retrata as atividades realmente desenvolvidas pelos trabalhadores. Um dos aspectos que ajuda a explicar esta diferença entre o prescrito e o real é a especificidade do contexto em que a atividade se realiza. Apesar da tentativa de se controlar tudo que entra na produção, sempre ocorrem incidentes e variações que mudam a situação de trabalho. Portanto, longe de ser um conjunto de regras conhecidas de antemão, a atividade de trabalho é um conjunto de regulações contextualizadas no qual tomam parte tanto a variabilidade do contexto em que se realiza o trabalho quanto a variabilidade própria ao trabalhador que o executa.2

            A atividade laboral é o elemento central que organiza e estrutura os componentes da situação de trabalho. É uma resposta aos constrangimentos determinados exteriormente ao trabalhador, e ao mesmo tempo é capaz de transformá-los. Os resultados da atividade de trabalho devem ser relacionados com a produtividade e, também, com as consequências que acarretam nos trabalhadores. Essas consequências podem ser negativas, alterando a saúde e o bem-estar ou positivas, adquirindo novos conhecimentos, experiência e qualificação.1

           A interação entre a situação de trabalho, os fatores ambientais e a organização do processo produtivo é a principal fonte de aumento da carga de trabalho, propiciando o desgaste e o adoecimento.

            A organização do trabalho apresenta alguns aspectos importantes para o entendimento das repercussões sobre a saúde dos trabalhadores:

  • As relações de poder se estabelecem pela hierarquia e na divisão técnica das atividades de trabalho. O conhecimento formal e a experiência podem significar poder estabelecido pela gestão horizontal, isto é, no mesmo nível hierárquico. A avaliação dos focos de poder implica o conhecimento da estrutura hierárquica das empresas e a identificação de lideranças informais exercidas pela hierarquia do conhecimento.
  • Ocontrole pode exercer uma pressão coercitiva e potencialmente nociva. Modernos métodos aliam técnicas administrativas a inovações tecnológicas. São exemplos os sistemas de gerenciamento de treinamentos virtuais com comprovante de realização mediado por assinaturas eletrônicas. O exercício do controle promove uma pressão para a realização do treinamento e o torna obrigatório. Outra forma de controle, que é vista como uma dimensão saudável, é o controle exercido sobre a própria atividade de trabalho – o espaço de autonomia para definir os seus modos operatórios.3
  • A divisão das atividades – de acordo com o seu conteúdo, o volume de trabalho, os esforços requeridos e, ainda, a capacitação técnica e a experiência – apresenta um grande número de implicações para a saúde dos trabalhadores. Quanto ao conteúdo, o mais importante é o significado que o trabalho tem para quem o realiza.3 Para ser significativo, o trabalho deve ser eficiente e gerar resultados, intrinsecamente satisfatório, moralmente aceitável, seguro e fonte de experiências de relações humanas positivas. Deve proporcionar autonomia financeira e ocupação para as pessoas.4
  • A estruturação temporal do trabalho assume especial valor na determinação do bem-estar. São os aspectos referidos à repetitividade e variabilidade das tarefas, à qualidade das pausas, das folgas e dos intervalos entre as jornadas. O exercício do trabalho sob a pressão do tempo é fonte de ansiedade.3
  • A sociabilidade inclui os relacionamentos humanos entre gerentes, supervisores e colegas de trabalho. O suporte sócioemocional é o produto dessa interação e depende do grau de integração social e da confiança nas relações interpessoais e intergrupais.

            A carga de trabalho

            A carga de trabalho é um conceito básico da ergonomia utilizado no estudo da interface entre o trabalho e a saúde. Esse conceito fornece elementos para entender os mecanismos pelos quais os processos de trabalho interferem na qualidade da vida produtiva e na saúde e explicar a conexão entre a atividade do trabalho e o desgaste do trabalhador.

            A ergonomia trata a carga de trabalho como um instrumento conceitual auxiliar na busca do entendimento sobre as repercussões da atividade de trabalho sobre a saúde e o desempenho do trabalhador, orientando a formulação de critérios de intervenção sobre situações de trabalho específicas. A carga de trabalho relaciona-se ao compromisso com o trabalho, à responsabilidade pelos resultados obtidos ou à habilidade em responder às demandas da atividade. A noção de carga de trabalho deve ser interpretada a partir da identificação e compreensão da dinâmica operatória frente aos objetivos da produção, às exigências da tarefa e às condições de execução da atividade em situações de trabalho específicas.5

            A carga de trabalho apresenta pelo menos três componentes: físico, cognitivo e psíquico. Cada um deles pode determinar sobrecarga ou sofrimento. Esses aspectos se inter-relacionam e, via de regra, a sobrecarga de um deles é acompanhada de uma carga muito elevada nos outros dois campos. Esta separação tem a finalidade apenas taxonômica, devendo-se considerar as múltiplas dimensões da carga de trabalho de uma forma integral.6

            Nos países industrializados, as inovações tecnológicas propiciam uma melhoria das condições ambientais no trabalho, caracterizando uma tendência para redução da carga física imposta aos trabalhadores. Por outro lado, as novas tecnologias têm imposto cada vez mais exigências de natureza cognitiva, implicando aceleração do ritmo e elevação da complexidade e intensidade do trabalho. Associados à organização do trabalho autoritária e inflexível, conduzem ao aumento da carga psíquica e cognitiva dos trabalhadores.7

            Os centros integrados de controle das plantas petroquímicas são exemplos de inovação tecnológica. Em geral, constituem-se de um sistema digital de controle à distância composto por uma rede de microcomputadores. Os operadores observam e acompanham a evolução dos indicadores (pressão, temperatura, vazão, etc.) em todas as etapas do processo produtivo representadas nas telas dos terminais de vídeo. A área industrial é monitorada pelo circuito fechado de televisão. As imagens podem ser programadas para visualização de vários postos de trabalho e equipamentos, permitindo o acompanhamento das atividades e a intervenção nas variáveis do processo. A comunicação entre os operadores de painel com os operadores da área industrial e da manutenção é feita com a utilização dos rádios, telefones e interfones. As variabilidades operacionais fora das margens de tolerância previstas são detectadas pelos sistemas de alarmes luminosos e sonoros. Quanto maior a variabilidade do processo, maior será a demanda de regulação e a frequência de comunicações através do rádio, telefone e alarmes.

            Nas empresas sobreviventes do mundo globalizado, a organização do processo produtivo é determinada pela liderança e ocorre a partir do planejamento estratégico. São levadas em consideração as necessidades atuais e futuras de todas as partes interessadas no negócio, que são traduzidas em indicadores, metas e ações, e desdobradas pelos gerentes, coordenadores e supervisores. A implementação destas ações é acompanhada e analisada nas reuniões de análise crítica do desempenho e visa ao atendimento das necessidades do funcionamento da instituição.

            O plano de gestão define a política, os valores, a missão e estabelece um plano de ações e indicadores para garantir o equilíbrio na alocação dos recursos para o alcance das metas traçadas. Em geral, a adoção das normas de qualidade é um instrumento da liderança no sentido de orientar as decisões em todos os níveis da organização.

            A comunicação interna das decisões gerenciais ocorre segundo o tipo e a relevância das informações. O fluxo se dá em cascata. A diretoria comunica aos gerentes, e estes aos coordenadores, supervisores e equipes. Outros instrumentos também são utilizados. Os meios eletrônicos cada vez mais ganham espaço. O correio eletrônico é uma ferramenta ao mesmo tempo útil e perigosa. Não garante a continuidade do processo. Um fator crítico é o excesso de informações veiculadas. As pessoas reclamam do tempo necessário para ler e responder a centenas de mensagens diariamente. Informações importantes se perdem ou não são acessadas e respondidas em tempo.

            Para atingir os objetivos da produção, a empresa se organiza de forma a tentar limitar a variabilidade do processo produtivo ou do fornecimento de serviços. A competência na gestão do processo produtivo e o conhecimento da variabilidade tende a tornar o controle mais eficaz. O planejamento estratégico, a análise crítica e as ações corretivas são implementados pela gestão vertical da empresa para que as metas e os objetivos sejam alcançados com qualidade e produtividade.

            Apesar disso, podem ocorrer eventos imprevistos – a variabilidade aleatória – que mudam a situação de trabalho. Portanto, para que os objetivos previstos sejam alcançados, é necessário o estabelecimento de uma gestão horizontal do ambiente organizacional. Essa gestão vai estabelecer os ajustes em tempo real. Trata-se de um processo dinâmico que envolve autonomia e responsabilidade para enfrentar as variabilidades do processo com foco na produtividade, respeitando-se os princípios e valores de Saúde, Meio ambiente e Segurança.

            O operador estabelece o seu “modo operatório” em função da situação de trabalho, que inclui as condições, a atividade e o resultado do trabalho sob o aspecto pessoal e empresarial. Essa organização se dá tanto no plano individual quanto no coletivo e caracteriza a gestão horizontal. Conforme a situação de trabalho, a margem de manobra que o operador dispõe, seja no plano individual ou no coletivo, pode ser maior ou menor. No trabalho coletivo existe cooperação explícita para a realização conjunta de uma mesma tarefa. O ajuste dos modos operatórios em um plano individual e coletivo se dá em tempo real. Nos trabalhos caracterizados pelos processos contínuos, envolvendo alta complexidade e tecnologia avançada, é necessário que, tanto em nível do operador quanto do coletivo, se tenha uma boa representação do trabalho e bom conhecimento técnico do processo em todas as suas diferentes fases.7

            A gestão horizontal torna-se mais visível em situações de aumento da carga de trabalho provocada pelo prolongamento da jornada, exigências de produção, alta complexidade do processo e estados de alerta gerados por ocorrências anormais. Os operadores modificam os modos operatórios, a partir das “margens de manobra” disponíveis naquele momento, para alcançar os objetivos pré-determinados. A gestão horizontal agrega as competências e os saberes empregados no cotidiano das equipes que não estão expressos no trabalho prescrito pela gestão vertical.

            Muitas vezes, a desconexão entre o trabalho prescrito e o trabalho real implica a necessidade de transgredir, ostensiva ou veladamente, para poder executar as tarefas prescritas. A carga de trabalho é um elemento de mediação entre a atividade de trabalho e o processo de desgaste do trabalhador. Ela aumenta quando a flexibilidade da organização do processo produtivo e as alternativas operatórias frente à variabilidade das situações de trabalho diminuem. Quanto mais flexível for a organização do trabalho, permitindo a ampliação das “margens de manobra” e a adaptação aos modos operatórios dos operadores, menor é a possibilidade de provocar o aumento da carga de trabalho e o desgaste da saúde do trabalhador.5

            A flexibilidade da organização do trabalho está estreitamente relacionada ao grau de controle sobre o próprio trabalho e às possibilidades que o indivíduo tem para aplicar suas habilidades e criatividade. Implica, também, capacidade decisória, autonomia e influência sobre o grupo de trabalho. Além disso, ela está relacionada às demandas psicológicas a que o trabalhador é submetido na execução das suas tarefas.

            Psicodinâmica do trabalho       

            A Psicodinâmica do trabalho surgiu a partir do momento em que Christophe Dejours colocou-se à escuta do trabalhador e passou a considerar a normalidade como um enigma, transformando-a em objeto de estudo. O foco das investigações foi redirecionado da Psicopatologia do trabalho (doenças mentais) para as estratégias de defesa elaboradas pelos trabalhadores para enfrentar mentalmente as situações de trabalho e evitar o sofrimento. Nesta evolução da disciplina, a questão do sofrimento passou a ocupar uma posição central.8,9

            Na abordagem Psicodinâmica do trabalho, as intervenções devem promover um processo de reflexão ativa dos trabalhadores sobre o próprio trabalho, permitindo sua apropriação e emancipação e conduzindo a uma reconstrução coletiva do trabalho. Sob essa perspectiva, o modelo propicia aos profissionais o estudo em situações concretas de trabalho dos aspectos subjetivos e menos visíveis. Da mesma forma que, durante uma entrevista, o que não é dito, muitas vezes, é mais importante do que é verbalizado, procurar na organização real a face oculta do trabalho prescrito pode ser mais revelador. As intervenções dirigidas para a transformação de situações de trabalho devem considerar os aspectos subjetivos e a sua centralidade enquanto elemento constituidor do indivíduo e da sua identidade.10

            A relação do homem com a organização do processo produtivo é a origem da carga psíquica, cuja elevação é produzida pela organização do trabalho autoritária, que não oferece uma saída apropriada à energia pulsional. A construção do trabalho saudável, sob esta ótica, parte dos princípios de respeito à construção da identidade do indivíduo, no âmbito de uma organização do trabalho flexível, que permite ao trabalhador maior liberdade para construir o seu modo operatório, ampliar as margens de manobra, aplicar a criatividade, respeitando-se os limites de ser humano. Dejours afirma que “o pleno emprego das aptidões psicomotoras, psicossensoriais e psíquicas parece ser uma condição de prazer do trabalho”.11

            “Desvelar o espesso véu de silêncio, com relação ao sofrimento patogênico, é um desafio fundamental para a Psicodinâmica do Trabalho e para o futuro do trabalho em si”.12

            O estudo da psicodinâmica do trabalho pode contribuir para transformá-lo em agente estruturante psíquico e redirecionar os caminhos do sofrimento para o prazer, a saúde e a qualidade de vida: o trabalho saudável!

REFERÊNCIAS:

1. GUÉRIN, F. et al. Compreender o trabalho para transformá-lo. São Paulo: Edgard Blücher, 2001. 200p.

2. ASSUNÇÃO, A.A.; LIMA, F.P.A. A contribuição da ergonomia para a identificação, redução e eliminação da nocividade do trabalho. In: MENDES R. Patologia do trabalho. 2.ed. Rio de Janeiro: Atheneu, 2003. cap.45, p.1767-1789.

3. SELIGMAN-SILVA, E. Psicopatologia e Saúde Mental no Trabalho. In: MENDES, R. Patologia do trabalho. 2.ed. Rio de Janeiro: Atheneu, 2003. cap.25, p.1141-1182.

4. MORIN, E. Os sentidos do trabalho. São Paulo:ERA, 2002.

5. ECHTERNACHT, E.H.O. A produção social das lesões por esforços repetitivos no atual contexto da reestruturação produtiva brasileira. 1998. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação de Engenharia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro 1998.

6. WISNER, A. Por dentro do trabalho: ergonomia, método e técnica. São Paulo: FTD/Oboré, 1987.

7. DANTAS, J. Hipertensão arterial e fatores psicossociais no trabalho em uma refinaria de petróleo. 2003. 143 p. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) – Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública,Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2003.

8. BRANT, L.C.; MINAYO-GOMEZ, C. The transformation process of suffering into illness: from the birth of the clinic to the psychodynamic work. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de janeiro, v.9, n.1, p.213-223, 2004.

9. DEJOURS, C. A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,1999.

10. LANCMAN, S.; UCHIDA, S. Trabalho e subjetividade: o olhar da psicodinâmica do Trabalho. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, São Paulo, v. 6, p. 79-90, 2003.

11. DEJOURS, C.; ABDOUCHELI, E.; JAYET, C. Psicodinâmica do trabalho: contribuições da Escola Dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo: Atlas, 1994.

12. UCHIDA, S; LANCMAN, S;SZNELWAR,LI. Contribuição da psicodinâmica do trabalho para a transformação e melhoria da organização e do conteúdo do trabalho. In: René Mendes. (Org.). Patologia do trabalho. 3a. ed. Rio de janeiro: Atheneu, 2013. Cap. 50, p. 1627-1638.