Julizar Dantas

O sujeito

exposto ao trabalho complexo

e excessivo controle

resiste.

O trabalhador

vítima e ator social

sucumbe...

 

            A relevância dos aspectos psicossociais do trabalho tem crescido e despertado o interesse de pesquisadores nas últimas décadas. Nos países desenvolvidos as demandas físicas estão diminuindo e a complexidade das demandas psicossociais aumenta cada vez mais. Já existe o reconhecimento da relação entre as precárias condições psicossociais do trabalho, a baixa produtividade e os agravos à saúde dos trabalhadores. 1

            Na década de 1960, as pesquisas sobre condições de trabalho e doenças cardiovasculares começaram pelos estudos de demandas do trabalho e horas trabalhadas. As fontes de risco subjacentes ficaram esquecidas e a maioria dos estudos sobre causas psicossociais de doenças crônicas concentrou-se nos eventos de vida. Por outro lado, os estudos sobre os impactos da estrutura organizacional enfocavam mais especificamente a insatisfação no trabalho.1

            Na década de 1970, surgiram estudos envolvendo outros aspectos e dimensões. O trabalho ativo foi relacionado ao alto grau de habilidade e autonomia em associação com as demandas psicológicas exigidas pelas tarefas.2 Observou-se que o comportamento no lazer era afetado pelas oportunidades de tomar decisões no trabalho e pelos trabalhos mentalmente desafiantes.3 Demonstrou-se que a “experiência ativa” resultava de situações que envolviam desafios psicológicos e níveis elevados de competência.1

            Em 1979, Karasek, reconhecendo a limitação dos enfoques unidimensionais – demandas do trabalho ou horas trabalhadas – enfatizou a necessidade de desenvolver um novo modelo comum para os diversos aspectos psicossociais do trabalho. Propôs a abordagem conjunta das demandas psicológicas e do controle exercido sobre o próprio trabalho e as repercussões sobre a saúde dos trabalhadores. Sob essa perspectiva, surgiu o modelo demanda-controle (Job Strain Model). Foi proposto e desenvolvido para investigar ambientes onde os aspectos psicossociais agem como estressores crônicos, resultantes da complexa relação das tomadas de decisões no contexto da organização social do trabalho, produzindo impactos e limitações importantes no comportamento individual.4

            O modelo é baseado nas duas principais dimensões psicossociais do trabalho: as demandas psicológicas envolvidas na execução das tarefas e atividades ocupacionais e o controle exercido pelos trabalhadores sobre o próprio trabalho. O modelo demanda-controle prediz:

a)    riscos de desgaste no trabalho e adoecimento psíquico e físico;

b)    motivação para desenvolver novos comportamentos (ativo ou passivo)

relacionados ao trabalho.5

            A dimensão “demandas psicológicas” inclui as exigências psicológicas

relativas à execução das tarefas:

  • trabalho sob pressão

o   gerência e supervisão;

o   pressão do tempo;

  • tempo insuficiente para a execução da tarefa;
  • proporção do tempo de trabalho realizado sob pressão;
  • trabalho excessivo;
  • demandas conflitantes;
  • ritmo e complexidade do trabalho;
  • variabilidade, grau de incerteza e ambiguidade das tarefas;
  • nível de concentração requerido;
  • frequência de interrupção das tarefas;
  • dependência de atividades realizadas por terceiros.

            A dimensão “controle sobre o próprio trabalho” subdivide-se em dois outros componentes:

a)    uso de habilidades requeridas pelo trabalho. Representa o potencial para desenvolver habilidades especiais e aprender coisas novas, aplicar a criatividade, diversificar as tarefas e o grau de repetitividade;

b)    autoridade decisória implica capacidade decisória, autonomia, flexibilidade para utilizar as margens de manobra, influência sobre o grupo de trabalho e a habilidade que o indivíduo tem para tomar decisões.

De acordo com o modelo bidimensional, a interação entre as demandas psicológicas e o grau de controle sobre o próprio trabalho pode ser representada por quatro combinações, uma em cada quadrante:

1 trabalho de alto desgaste: alta demanda e baixo controle;

2 trabalho ativo: alta demanda e alto controle;

3 trabalho de baixo desgaste: baixa demanda e alto controle;

4 – trabalho passivo: baixa demanda e baixo controle.

            O Job Strain Model prediz que os riscos para a saúde física e mental dos trabalhadores estão associados à combinação entre a alta demanda psicológica e o baixo grau de controle no confronto com essas demandas, produzindo o trabalho de alto desgaste.

            Existem predições adicionais. O trabalho ativo ocorre quando a alta demanda no trabalho, desde que não ultrapasse um limite crítico, está associada ao alto grau de controle do trabalhador. O trabalho ativo implica motivação para desenvolver novos tipos de comportamentos, propor e aceitar desafios. A aprendizagem ocorre em situações que requerem do indivíduo a liberação de energia psíquica associada ao exercício da capacidade de tomar decisões relevantes. Essas oportunidades propiciam o desenvolvimento intelectual. Uma situação de trabalho saudável permite o desenvolvimento do indivíduo, alternando períodos de estímulos e pausas numa interação dinâmica entre o homem e o ambiente. O mesmo não ocorre no trabalho passivo.

            As condições de baixa demanda associadas com o baixo nível de controle promovem a desmotivação para o trabalho, conduzem ao declínio da aprendizagem e à perda gradual das habilidades previamente adquiridas. O trabalho de baixo desgaste é, teoricamente, ideal sob a perspectiva da saúde. Na atualidade, a baixa demanda nos ambientes de trabalho significa ausência de demanda excessiva. Trabalhar em atividades com baixa demanda pode colocar em risco o emprego e comprometer o engajamento social do trabalhador.5,6,7,8

            A partir da realização de estudos utilizando o modelo bidimensional, tornou-se evidente que ele não era capaz de explicar todas as situações detectadas. Por isso, um terceiro componente, o suporte social no trabalho foi incorporado ao modelo original. Johnson & Hall (1988) afirmam ser difícil a separação teórica entre o suporte coletivo e o controle coletivo. Trabalhadores expostos a condições adversas de trabalho podem se unir e aumentar o controle sobre elas.9

            Diferentes variedades de suporte social são relevantes. O supervisor e os colegas de trabalho são as principais fontes de apoio. São, também, fundamentais o suporte instrumental (quando falta o recurso material, alguém deve estar disponível para ajudar) e o emocional. O apoio social percebido refere-se à natureza das interações que ocorrem nos relacionamentos sociais. Existem diferentes tipos de suporte social. O afeiçoamento, a integração social, a oportunidade de ser cuidado, o reconhecimento do valor de alguém, o senso de aliança confiável, a obtenção de orientação, a ajuda material e os serviços de informação são os principais.8

            O suporte social envolve a sociabilidade dentro do local de trabalho. Inclui o apoio da gerência, supervisão e colegas de trabalho e atua como um fator protetor. Essa proteção depende do grau de integração social e confiança entre os colegas de trabalho e supervisores, isto é, o suporte socioemocional. O baixo suporte social no trabalho intensifica o risco associado ao trabalho de alto desgaste. Esta é, hipoteticamente, a pior situação prevista pelo modelo tridimensional.5,9,10 A revisão da literatura aponta o suporte social elevado como um fator de amortecimento dos efeitos prejudiciais do trabalho de alto desgaste.11

            O modelo demanda-controle, atualmente denominado Job Strain Model, utiliza um instrumento, o Job Content Questionnaire (JCQ), para avaliação dos aspectos psicossociais do trabalho. O JCQ é um questionário autoaplicado. A versão atual é composta por 49 questões dispostas em escalas, assim distribuídas:

  • demanda psicológica - 9 questões;
  • controle sobre o trabalho – 17 questões;

o   uso de habilidades - 6 questões;
o   autoridade decisória - 3 questões; e
o   autoridade decisória em nível macro - 8 questões;

  • suporte social - 11 questões;

o   proveniente da gerência e supervisão – 5 questões;

o   proporcionado pelos colegas de trabalho – 6 questões;

  • demanda física - 5 questões;
  • insegurança no trabalho - 6 questões;
  • uma questão sobre o nível de qualificação exigida para o trabalho executado (corresponde ao nível educacional requerido pelo posto de trabalho ocupado).6

            O JCQ requer autorização prévia dos autores para a sua utilização. Uma versão em Português está aprovada desde 2001 e pode ser requisitada pelo site http://www.jcqcenter.org/.

            Os trabalhos pioneiros serviram de base empírica para a sustentação do modelo que foi amplamente difundido e tem sido aplicado em áreas de pesquisa em saúde ocupacional e na investigação da relação entre os aspectos psicossociais do trabalho e as suas repercussões sobre a saúde dos trabalhadores.4,12

            O Job Strain Model tem sido empregado, principalmente, em estudos de doenças cardiovasculares e seus fatores de risco. O modelo também foi aplicado na investigação de transtornos mentais e comportamentais, absentismo, acidentes de trânsito e do trabalho, câncer e mortalidade geral, entre outros. Esses estudos mostram claramente que o trabalho de alto desgaste influencia a saúde e a qualidade da vida de várias maneiras e que nenhuma delas parece ser benéfica.13

            No Brasil, o Job Strain Model foi utilizado para avaliar a associação entre demanda-controle e distúrbios psíquicos em mulheres trabalhadoras de enfermagem.14 Em outro estudo, tipo caso-controle, realizou-se a investigação da relação entre o desgaste no trabalho com a hipertensão arterial, trabalho em turnos, uso de álcool e fumo.15 Porém a conexão entre o desgaste no trabalho e doença cardiovascular, sob a ótica desse modelo, ainda carece de mais estudos em nosso meio.

            A introdução do modelo demanda-controle-suporte social estimulou muitos projetos de pesquisa durante os últimos anos. A literatura acumulada sugere fortemente associação causal entre o desgaste no trabalho e doença cardiovascular. Uma evidente relação entre condições de trabalho adversas (particularmente, baixo nível de controle sobre o próprio trabalho) e doença coronariana tem sido estabelecida. Vários mecanismos biológicos têm sustentação empírica para justificar esta associação, especialmente a hipertensão arterial. Outra contribuição do modelo foi a comprovação da importância dos aspectos sociais e psicológicos relacionados ao trabalho como fatores de risco para doenças crônicas. Estudos longitudinais são necessários para melhor compreensão de outras relações entre os aspectos psicossociais do trabalho e o adoecimento dos trabalhadores. Estudos de intervenção para avaliar o efeito da redução do desgaste no trabalho são oportunos e necessários.1,11

            No Brasil, Araújo (1999) tem fornecido expressiva contribuição ao estudo do modelo. As principais críticas formuladas são:14

  • as duas dimensões básicas preditas no modelo, controle e demanda, aparecem como atributos independentes, expressos em uma relação de ortogonalidade. Entretanto, questiona-se a real independência entre essas dimensões. No caso do trabalho ativo – uma combinação entre altas demandas e alto controle – as demandas excessivas poderiam bloquear os reforços provenientes do alto controle. Assim, parece haver interdependência desses fatores. É possível que a demanda possa estar incluída no processo de controle. Torna-se necessário investigar as possíveis conexões entre eles;
  • outra crítica diz respeito à capacidade de discriminar, de forma adequada, os níveis de exigência no trabalho, especialmente em atividades de baixa qualificação intelectual, e medir a demanda psicológica de forma confiável.6

            Apesar das críticas conceituais e operacionais sobre o modelo, não há dúvida quanto à sua contribuição para o melhor conhecimento da organização do trabalho e suas consequências sobre a saúde dos trabalhadores. O modelo demanda-controle-suporte social proporciona estrutura conceitual integrativa para o estudo do desgaste no trabalho e a intervenção sobre o ambiente e organização do trabalho. As críticas são contribuições, visando ao seu aperfeiçoamento, sem negar a sua utilidade nas investigações em saúde e trabalho.6,16


REFERÊNCIAS:

1. THEORELL, T.; KARASEK R.A. Current issues relating to psychosocial job strain and cardiovascular disease research. Journal of Occupational Health Psycology, Washington, v.1, n.1, p.9-26, 1996.

2. KOHN, M.; SCHOOLER, C. Occupational experience and psychological functioning: an assessment of reciprocal effects. American Sociology Review, [s.l], v.38, p.695-696, 1973.

3. MEISNER, M. The long arm of the job. Industrial Relations Journal, Nottingham, p.239-260, 1971.

4. KARASEK, R. Job demand, job decision latitude and mental strain: implications for job redesign. Administrative Science Quartely, Nova York, v.24, p.285-308, 1979.

5. KARASEK, R.; THEORELL, T. The demand-control-support model and CVD. Occupational Medicine, Philadelphia, v.15, p.78-83, 2000.

6. ARAÚJO, T.M; GRAÇA, C.C; ARAÚJO, E. Estresse ocupacional e saúde: contribuições do Modelo Demanda-Controle. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro,  v. 8,  n. 4,  2003.

7. KARASEK, R. et al. The Job content questionnaire (JCQ): an instrument for internationally comparative assessments of psycosocial job characteristics. Journal of Occupational Health Psycology, Washington, v.3, n.4, p.322-355, 1998.

8. ROCHA, L.E.; GLIMA, D.M.R. Distúrbios psíquicos relacionados ao trabalho. In: FERREIRA JUNIOR, M. Saúde no trabalho: temas básicos para o profissional que cuida da saúde dos trabalhadores. São Paulo:Roca, 2000. cap. 12, p.320-351.

9. JOHNSON, J. V.; HALL, E.M. Job strain, work place social support and cardiovascular disease: a cross-seccional of a random sample of the Swedish working population. American Journal of Public Health, Washington, v.86, n.3, p.324-331, 1988.

10. KARASEK, R.; THEORELL, T. Healthy work-stress, productivity and the reconstruction of working life. United States: Basic Books, 1990. 381p.

11. SCHNALL, P.L.; LANDBERGIS, P.A.; BAKER, D. Job strain and cardiovascular disease. Annual Revue of Public Health, Palo Alto, v.15, p.381-411, 1994.

12. KARASEK, R. et al. Job decision latitude, job demands and cardiovascular disease: a prospective study of Swedish men. American Journal of Public Health, Washington, v.71, n.7, p.694-705, 1981.

13. KRISTENSEN, T.S. The Demand-Control-Suport Model: methodological challenges for future research. Stress Medicine, [s.l], v.11, p.17-26, 1995.

14. ARAÚJO, T.M. Trabalho e distúrbios psíquicos em mulheres trabalhadoras de enfermagem. 1999. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1999.

15. DANTAS, J.; MENDES, R.; ARAÚJO, T.M. Hipertensão Arterial e Fatores Psicossociais no Trabalho em uma Refinaria de Petróleo. Revista Brasileira de Medicina no Trabalho, Belo Horizonte, v.2, n.1, p.55-68, 2004.

16.  DANTAS, J. Hipertensão arterial e fatores psicossociais no trabalho em uma refinaria de petróleo. 2003. 143 p. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) – Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2003.