Julizar Dantas

As arritmias cardíacas constituem um grupo de anormalidades do ritmo cardíaco que podem ser classificadas como distúrbios da formação de impulsos, distúrbios da condução de impulsos ou, ainda, identificada pela combinação dos dois mecanismos eletrofisiológicos.

As arritmias podem cursar assintomáticas. A capacidade de percepção da arritmia varia de pessoa para pessoa. A principal manifestação é a palpitação, que pode aparecer sem que nenhum distúrbio do ritmo cardíaco seja identificado. Dependendo da repercussão hemodinâmica, pode ocorrer hipotensão arterial, tonteira, síncope e insuficiência cardíaca congestiva. A morte súbita pode sobrevir após o desencadeamento de taquiarritmias ventriculares, frequentemente relacionadas à doença isquêmica do coração.

A anamnese e o exame físico são úteis na suspeição e na detecção das arritmias e no diagnóstico da cardiopatia subjacente. O eletrocardiograma de repouso e a monitorização ambulatorial pelo Holter são os exames básicos para a confirmação do diagnóstico. Os estudos eletrofisiológicos invasivos são usados em casos especiais para determinar o diagnóstico e o mecanismo eletrofisiológico envolvido. Eles podem ter finalidade terapêutica na ablação por cateter de vias ou focos anômalos responsáveis pela arritmia.

O teste da inclinação (tilt test) está indicado na avaliação da síncope por mediação neural. O teste ergométrico é útil na investigação de arritmias secundárias à doença isquêmica do coração, e o ecodopplercardiograma deve ser utilizado para a detecção de cardiopatia subjacente e para a avaliação funcional, fatores importantes para o prognóstico e na tomada da decisão terapêutica. A investigação laboratorial contribui para a identificação de distúrbios hidro-eletrolíticos e de alterações metabólicas que possam desencadear ou agravar a arritmia.

As principais causas para a origem cardíaca das arritmias, em adultos, são a doença isquêmica do coração, a cardiopatia hipertensiva, as miocardiopatias, a doença de Chagas, a doença reumática e as lesões valvulares, as síndromes de pré-excitação ventricular e as cardiopatias congênitas. Mas doenças do sistema nervoso central ‒ SNC, pneumopatias com insuficiência respiratória e hipóxia tissular, doenças sistêmicas, infecciosas e parasitárias com alterações metabólicas e distúrbios hidro-eletrolíticos, medicamentos (inclusive os antiarrítmicos), o fumo, a ingestão excessiva de álcool e cafeína, a cocaína e outras drogas estimulantes do SNC também são causas comuns de arritmias cardíacas.

A exposição ocupacional a substâncias tóxicas pode desencadear arritmias cardíacas, em alguns casos com mecanismos fisiopatológicos bem definidos. A intoxicação pelo monóxido de carbono prejudica o transporte de oxigênio pelo sangue e diminui a sua liberação tissular produzindo hipóxia. Foi demonstrado que o monóxido de carbono diminui o limiar de fibrilação ventricular em animais de experimentação (Aronow et al., 1979). Distúrbios da formação dos impulsos (extrassístoles atriais e ventriculares, fibrilação atrial, fibrilação ventricular) e distúrbios de sua condução (bloqueio infranodal e intraventricular, prolongamento do intervalo QT) foram relatados (Onvlee-Dekker et al., 2007; Marius-Nunez, 1990; Wu; Huang; Hsia, 2009). O eletrocardiograma pode mostrar alterações da repolarizaçào ventricular sugestivas de isquemia ou de infarto do miocárdio, além de vários tipos de arritmia (McCunney, 1988; Benowitz, 1990).

A hemólise maciça, causada pela arsina, produz hipercalemia e alterações eletrocardiográficas características, podendo resultar em parada cardíaca. Entre as alterações eletrocardiográficas já encontradas, notam-se distúrbios de condução, bloqueios atrioventriculares de vários graus, e assistolia (Benowitz, 1990; Benowitz, 1992).

A exposição crônica aos nitratos promove vasoconstrição arterial compensatória, mediada por resposta do sistema nervoso simpático e por ativação do sistema renina-angiotensina. Se a exposição aos nitratos é cessada, prevalece a ação destes sistemas compensatórios (sistema nervoso simpático e sistema renina-angiotensina), que deixam de ser contrapostos pela ação dos nitratos, levando à isquemia miocárdica e a arritmias cardíacas, manifestadas clinicamente por angina pectoris, infarto do miocárdio emorte súbita (Vigliani et al., 1968; Benowitz, 1990; Benowitz, 1992).

Numerosos casos de arritmias cardíacas e de morte súbita, presumivelmente devidos a arritmia, têm sido descritos em pessoas expostas a solventes e propelentes no ambiente de trabalho (Bass, 1970; Rosenman, 1984; McCunney, 1988; Robinson, Kuller; Perper, 1988; Benowitz, 1992). Foram descritos dois casos de fibrilação atrial e um caso de morte súbita em trabalhadores expostos a trifluorotricloroetano. Este agente e os hidrocarbonetos halogenados são usados como solventes industriais e estão associados a arritmias ventriculares e morte súbita após a inalação em concentrações excessivas (Kaufman; Silverstein; Moure-Eraso, 1993).

O tolueno é um solvente industrial largamente utilizado pelos dependentes químicos e que pode provocar morte súbita durante a inalação, devido a arritmias cardíacas (Cruz et al., 2003). O tetracloroetileno também é arritmogênico (Xiao; Levin, 2000).

Os solventes e propelentes produzem seus efeitos cardiotóxicos por meio de dois mecanismos distintos, dependendo da dose a que o trabalhador está exposto. Em baixas doses, essas substâncias têm a capacidade de aumentar a sensibilidade do coração para os efeitos arritmogênicos das catecolaminas (Morris; Noltensmeyer; White, 1953; Rosenberg, 1990).

Vários solventes, especialmente os hidrocarbonetos halogenados, podem causar algum grau de sensibilização miocárdica aos efeitos da epinefrina (Hoffmann et al., 1994). Alguns autores acham que esta sensibilização decorre de um efeito depressor no automatismo cardíaco, levando a uma incapacidade do sistema de condução de aumentar a frequência cardíaca, favorecendo o aparecimento de focos ectópicos (Smith et al., 1962). O fato é que a quantidade de epinefrina necessária para produzir taquicardia ou fibrilação ventricular é menor quando existe a exposição a baixas doses de solventes e propelentes. Este mecanismo é, provavelmente, a causa mais importante de toxicidade cardiovascular da exposição ocupacional a solventes, que podem causar arritmias fatais em seres humanos expostos a doses elevadas (Xiao; Levin, 2000).

Quando há altos níveis de exposição, estas substâncias podem deprimir a atividade do nó sinusal e causar bradicardia sinusal e até parada cardíaca, ou podem deprimir a condução atrioventricular, causando bloqueios de vários graus (Benowitz, 1992). Em alguns casos pode haver ambas as manifestações.

Indivíduos intoxicados por solventes e propelentes podem apresentar palpitações, síncope, hipotensão arterial e arritmias cardíacas. Convulsões, coma e parada cardíaca ocorrem em casos de intoxicação grave. Trabalhadores cardiopatas e que apresentam doença pulmonar crônica com hipoxemia são mais suscetíveis aos efeitos arritmogênicos dessas substâncias. Entre as arritmias descritas, incluem-se: contrações atriais e ventriculares prematuras, taquicardia supraventricular, taquicardia ventricular recorrente, extrassístoles ventriculares e supraventriculares, fibrilação atrial, fibrilação ventricular, bradicardia sinusal, bloqueios atrioventriculares e assistolia (Benowitz, 1990; Gasakure; Massin, 1991; Benowitz, 1992). Como um dos mecanismos de arritmia é devido às ações das catecolaminas, as drogas de escolha para o tratamento das taquiarritmias são os bloqueadores beta-adrenérgicos.

O diagnóstico da intoxicação por inseticidas organofosforados e carbamatos é feito através da anamnese e a confirmação laboratorial é feita pela dosagem da acetilcolinesterase. A intoxicação resulta em acúmulo de acetilcolina, podendo provocar taquicardia decorrente da estimulação de receptores nicotínicos, ou bradicardia secundária à estimulação de receptores muscarínicos.

Devido a uma alteração na condução elétrica, causada por estes praguicidas, podem ocorrer alterações eletrocardiográficas (Ludomirsky et al., 1982, Benowitz, 1990). Arritmias ocorreram em 9% dos casos de intoxicação de crianças por inseticidas anticolinesterase. As principais causas de mortalidade foram as arritmias e a insuficiência respiratória (Verhulst et al., 2002).

A intoxicação por organofosforados pode precipitar arritmias ventriculares complexas, um aspecto frequentemente negligenciado e potencialmente letal dessa condição. Os efeitos agudos consistem em alterações eletrocardiográficas do segmento ST-T e distúrbios da condução AV de graus variados, enquanto que os efeitos tardios incluem o prolongamento do intervalo QT, taquicardia polimórfica (Torsades de pointes) e morte súbita cardíaca. Outras alterações descritas são: fibrilação atrial e infradesnivelamento do segmento ST (Namba et al., 1970), além de alterações de repolarização e BAV 1º grau (Ludomirsky et al., 1982; Benowitz, 1990). O acompanhamento cardiológico dos pacientes intoxicados por organofosforados por períodos relativamente longos, após a intoxicação e o tratamento agressivo e precoce de arritmias, podem ser a chave para a melhor sobrevivência (Bar-Meir et al., 2007).

O uso terapêutico de compostos antimoniais para tratamento de infecções parasitárias provoca, entre outros efeitos colaterais, alterações eletrocardiográficas (mais comumente alterações de onda T e prolongamento do intervalo QT), e pode ter causado morte súbita em alguns pacientes (Benowitz, 1990; Benowitz, 1992). Em trabalhadores expostos ao trissulfeto de antimônio, casos de morte súbita e alterações eletrocardiográficas também já foram descritos (Rosenman, 1984; Gasakure; Massin, 1991; Benowitz, 1992).

A reavaliação algum tempo depois, de alguns trabalhadores expostos ao antimônio, nos quais foram encontradas alterações eletrocardiográficas e para os quais foi cessada a exposição, revelou que, em 21% deles, as alterações persistiam (Kristensen, 1989; Gasakure; Massin, 1991). O antimônio causa, basicamente, distúrbios da condução, distúrbios da repolarização e distúrbios do ritmo cardíaco (Rosenstock; Cullen, 1986; Gasakure; Massin, 1991).

Além da hipertensão arterial, outros distúrbios cardiovasculares podem ser observados na intoxicação pelo chumbo. Há, na literatura, relatos de alterações eletrocardiográficas (Rosenman, 1984) e de casos de miocardite, que se apresentaram com bradicardia, distúrbios de repolarização e bloqueio atrioventricular de primeiro grau (Read; Williams, 1952; Myerson; Eisenhauer, 1963). Uma revisão de literatura publicada em 2007 concluiu que a evidência é sugestiva mas não suficiente para estabelecer uma relação causal entre a exposição ao chumbo e a variabilidade de frequência cardíaca (Navas-Acien et al., 2007). Alterações eletrocardiográficas também são descritas em casos de intoxicação por mercúrio (Rosenman, 1984), arsênico e cobalto.

Os protocolos de procedimentos médico-periciais em doenças profissionais e do trabalho, elaborados pelo Ministério da Previdência e Assistência Social, consideram que, entre as arritmias cardíacas relacionadas com o trabalho que poderiam ser classificadas no Grupo I Schilling (trabalho como causa necessária), estariam aquelas que ocorrem em exposições ocupacionais bem definidas, como é o caso das substâncias químicas tóxicas acima mencionadas. A monitorização eletrocardiográfica de 24 horas (Holter) durante a jornada de trabalho é um instrumento útil para o diagnóstico de arritmia cardíaca relacionada ao trabalho, devendo ser feita concomitantemente com a monitorização ambiental e biológica da substância suspeita de exposição ocupacional.